Em janeiro de 2015, em Paris, um atentado assolou o satírico jornal Charlie Hebdo. Um grupo de homens, armados, abriram fogo contra o escritório do hebdomadário. O motivo: uma polêmica charge sobre os muçulmanos, estrelando o profeta Maomé.
Uma breve pesquisa com as palavras-chave corretas levará o leitor a variadas notícias sobre o ocorrido, cuja narração/ descrição do fato assemelha-se à minha (e muito melhores), incluídos vídeos das câmeras de segurança, bem como as chamadas alarmantes, sensacionalistas, ao fato. Chocantes cenas, questionável divulgação: já temos sangue demais em nossas telas.
No entanto, chamo a atenção para algo escandalosamente maior, que me dará breves minutos de fama (como se não fosse o objetivo) ou umas quantas rajadas de Kalashnikov. Sendo desenhista mal afamado, chargista de informações já passadas, porém – admito – cartunista de mão cheia, aprecio as extravagantes simplicidades da vida em traços por onde quer que estejam. Não basta criar ambientes, imaginar pessoas, animais, isto pouco importa. As situações, o estilo demarcado pela tinta, a singular presença artesã são os pontos cruciais de toda obra. Reiterar nelas a comicidade, do riso acanhado à escrachante gargalhada, faz delas verdadeiros incômodos sociais. Se me faço através do riso em minhas postagens, nada melhor que rabiscar como os controversos Charlies.
Em Coringa (The Joker – 2019), tamanho papel é endossado. Longe de ser uma doença sem tratamento, o riso é a denúncia de assuntos, preferencialmente absurdos, cujo choro, por exemplo, não desperta mais interesse algum. Belas palavras de risco iminente: “A piada é subjetiva.” Basta realocá-las com a palavra Arte e a sentença se tornará em um perfeito silogismo.
A subjetividade é bela, a piada é Arte e Maomé tornou-se figura pública desde então. O que era um símbolo “esquecido” pelo Ocidente, transformou-se em marco de intolerância. Ou será que não?
Seguindo o silogismo em questão, talvez os religiosos muçulmanos estivessem querendo participar do jogo. “Toc toc.” “Quem é?” “Maomé.” “Só o ‘mé’ pode entrar. Dispensamos o ‘ma’ daqui.” “Bem, pois é só isto o que temos. Ta! Ta! Ta! Ta! Ta! Ta! Ou, melhor, Ma! Ma! Ma! Ma! Ma! Ma!…” Cruzes! Que piada podre! Não tenho bom repertório delas. Mas, se fizeres o link com as cenas, com a moça que se viu obrigada a abrir caminho aos assaltantes, a mesma língua comum, pois falavam perfeitamente o francês, e o desfecho impactante das onomatopeias até que soa divertido.
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Quatro anos se passaram e as marcas daquele evento preocupam pela ausência. Particularmente, temo por minha vida quanto a receptividade dessas palavras. Melhor legá-las ao submundo, fazer de conta que não existem, vertê-las ao “esquecimento”. Muito atrevimento (pra não dizer coragem) de quem as coloca em exposição. Maomé é um de outros tristes exemplos de uma tradição dita imaculável, que não permite entrada do mundo das luzes, que clareiam todos os lados; um mundo de descobertas, e não de seitas. Diferentemente do trocadilho, tais seitas doem e fazem doer em demasia. Daí para que alguns Coringas, loucos de vontade de tirar sarro da cara dessas “autoridades”, como Sísifos determinados e zoar dos deuses, serenos de terem aceitado o torturante moto-contínuo de suas vidas – daí para que eles apareçam é questão de dias, muito distantes ou muito presentes, só para escarnecer através da perturbadora risada estridente. Aceitem!