Há tempos não tinha o prazer de me entorpecer com a leitura de pequenas novelas, contos, testículos enfim, providos de grande teor literário. Algumas se tornaram marcantes em meu espírito, como Noites Brancas, A Dócil, Gente Pobre, ambas de Fiódor Dostoiévski, exímio literato da Rússia do século XIX. (As três obras, anteriormente citadas, compõem o nosso catálogo de resenhas. Confira.) Retornar às leituras (e agora, espero, com atenta dedicação) de Joseph Conrad, este gênio da Literatura Inglesa do século XX, tão conhecido por suas grandes obras (No Coração das Trevas, Lord Jim, Nostromo, O Agente Secreto, A Loucura do Almayer, O Negro de Narciso) trouxe o alento de que precisava, opondo-se aos romances sagazes de quatrocentas páginas ou mais: rapidez.
Os dois autores aqui mencionados são, tanto para mim quanto à Literatura, duas figuras que conseguiram compartilhar os tormentos e percalços provenientes do Homem moderno, e que cada um viveu um pouco na pele tais atribulações, mas que, de igual modo, transformaram-nas em labor literário e, assim, em Arte. Ambos foram selecionados a dedo para comporem mais este trabalho, pois qual não foi o meu espanto ao saber que Conrad, pelas palavras de André Gide, na Introdução desta edição, “a menor menção do nome Dostoiévski o fazia empalidecer.” E mais: “Detestava-o cordialmente”. Mas também outras palavras de Gide reforçam meu pensamento: “[…] com [Dostoiévski], no entanto, não deixava de apresentar certas semelhanças.” Foram estrangeiros em terras distintas, mas encontraram nas trevas o mistério inerente a cada ser pensante.
Obviamente que o estilo de escrita de Conrad é sem comparação com a do russo. Há certa leveza na seleção de suas palavras, ao mesmo tempo em que elas são repletas de horror, o mesmo pronunciado pelo coronel Kurtz. A precisão é tamanha que leva o leitor a navegar juntamente à personagem, sentir o peso da narrativa em cada naufrágio, em cada lapso de desespero sentido por cada vestígio de abandono que se aproxima, sem chances de compreensão, implacável, sem misericórdia.
“Imaginação” é a palavra que circula por toda a novela. O único sobrevivente de um naufrágio consegue se refugiar numa terra estranha, vendo-se recluso pelos seus modos, sua língua, seu jeito oblongo e desajeitado de caminhar, tratado como um animal selvagem, conhecendo Amy Foster, mulher que possui imaginação suficiente para lidar com ele, de lhe estender a mão, ao ponto de se apaixonarem, casarem, terem um filho… e a imaginação se esvair. A narrativa é contada por dois narradores habitantes de Brenzett, em que o segundo deles, doutor Kennedy, conta ao primeiro o que ocorreu ao sensível estrangeiro.
A quem já se aventurou com o “romance sentimental” dostoievskiano, Biélye Nótchi (Noites Brancas), lembrar-se-á do generoso e solitário narrador e a rapariga sonhadora Nástienka, cuja “imaginação” estropia as quatro noites de seu novo amigo, indo embora com seu porto seguro. Konrad, polonês, exilado, adota o nome Conrad ao se encontrar em terras inglesas, das quais aprendera o idioma e, nelas, tornara-se escritor; Dostoiévski, habitante de Moscou, parte para São Petersburgo a fim de prosseguir em seus estudos, percebendo a saraivada agitação da cidade em contraste com o isolamento de alguns indivíduos. É inegável, dessa forma, dizer que ambos se utilizaram deste sentimento de estrangeiro para compor suas obras.
“[…] Ah, ele era diferente: um coração inocente e cheio de uma boa vontade que ninguém queria, esse náufrago, que, igual a um homem transplantado para outro planeta, estava separado de seu passado por um espaço imenso, e de seu futuro, por uma imensa ignorância. Sua fala rápida, vigorosa, positivamente chocava todo mundo. ‘Um demônio nervoso’, era como o qualificavam. […].” (CONRAD, p. 48)
Este é Conrad: implacável, sem misericórdia!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONRAD, Joseph. Amy Foster. Trad. Julieta Cupertino. RJ: Revan, 2007.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Noites Brancas. Trad. Nivaldo dos Santos. SP: Editora 34, 2009.