Coringa e a face de Maomé

Em janeiro de 2015, em Paris, um atentado assolou o satírico jornal Charlie Hebdo. Um grupo de homens, armados, abriram fogo contra o escritório do hebdomadário. O motivo: uma polêmica charge  sobre os muçulmanos, estrelando o profeta Maomé.

Uma breve pesquisa com as palavras-chave corretas levará o leitor a variadas notícias sobre o ocorrido, cuja narração/ descrição do fato assemelha-se à minha (e muito melhores), incluídos vídeos das câmeras de segurança, bem como as chamadas alarmantes, sensacionalistas, ao fato. Chocantes cenas, questionável divulgação: já temos sangue demais em nossas telas.

No entanto, chamo a atenção para algo escandalosamente maior, que me dará breves minutos de fama (como se não fosse o objetivo) ou umas quantas rajadas de Kalashnikov. Sendo desenhista mal afamado, chargista de informações já passadas, porém – admito –  cartunista de mão cheia, aprecio as extravagantes simplicidades da vida em traços por onde quer que estejam. Não basta criar ambientes, imaginar pessoas, animais, isto pouco importa. As situações, o estilo demarcado pela tinta, a singular presença artesã são os pontos cruciais de toda obra. Reiterar nelas a comicidade, do riso acanhado à escrachante gargalhada, faz delas verdadeiros incômodos sociais. Se me faço através do riso em minhas postagens, nada melhor que rabiscar como os controversos Charlies.

Em Coringa (The Joker – 2019), tamanho papel é endossado. Longe de ser uma doença sem tratamento, o riso é a denúncia de assuntos, preferencialmente absurdos, cujo choro, por exemplo, não desperta mais interesse algum. Belas palavras de risco iminente: “A piada é subjetiva.” Basta realocá-las com a palavra Arte e a sentença se tornará em um perfeito silogismo.

A subjetividade é bela, a piada é Arte e Maomé tornou-se figura pública desde então. O que era um símbolo “esquecido” pelo Ocidente, transformou-se em marco de intolerância. Ou será que não?

Seguindo o silogismo em questão, talvez os religiosos muçulmanos estivessem querendo participar do jogo. “Toc toc.” “Quem é?” “Maomé.” “Só o ‘mé’ pode entrar. Dispensamos o ‘ma’ daqui.” “Bem, pois é só isto o que temos. Ta! Ta! Ta! Ta! Ta! Ta! Ou, melhor, Ma! Ma! Ma! Ma! Ma! Ma!…” Cruzes! Que piada podre! Não tenho bom repertório delas. Mas, se fizeres o link com as cenas, com a moça que se viu obrigada a abrir caminho aos assaltantes, a mesma língua comum, pois falavam perfeitamente o francês, e o desfecho impactante das onomatopeias até que soa divertido.

* * *

Quatro anos se passaram e as marcas daquele evento preocupam pela ausência. Particularmente, temo por minha vida quanto a receptividade dessas palavras. Melhor legá-las ao submundo, fazer de conta que não existem, vertê-las ao “esquecimento”. Muito atrevimento (pra não dizer coragem) de quem as coloca em exposição. Maomé é um de outros tristes exemplos de uma tradição dita imaculável, que não permite entrada do mundo das luzes, que clareiam todos os lados; um mundo de descobertas, e não de seitas. Diferentemente do trocadilho, tais seitas doem e fazem doer em demasia. Daí para que alguns Coringas, loucos de vontade de tirar sarro da cara dessas “autoridades”, como Sísifos determinados e zoar dos deuses, serenos de terem aceitado o torturante moto-contínuo de suas vidas – daí para que eles apareçam é questão de dias, muito distantes ou muito presentes, só para escarnecer através da perturbadora risada estridente. Aceitem!

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Memórias de Adriano – Marguerite Yourcenar

É a primeira vez que percebo um livro respirar. Não é o tipo de respiração comum, como sentir o fluxo de ar passando pelas narinas, chegando aos pulmões e saindo pela boca, enfim, um movimento involuntário do corpo. Uma respiração diferente. Uma respiração pelas palavras.

Ser influenciado antecipadamente pela grandeza da obra de Marguerite Yourcenar, talvez a sua de maior renome (li A Obra em Negro há algum tempo e, desde então, considero-a como obra cânone), inspire minha leitura para novas descobertas, experiências que um olhar mais racional também é capaz de notar. Estar diante de um livro-vivo é saber-se responsável por esta vida a partir de seu índice.

Como o próprio livro indica, trata-se das Memórias de Adriano, um dos cinco grandes imperadores de Roma, e, assim, é uma obra escrita em primeira pessoa. Acredito que este aspecto formal denote mais ainda a respiração, se não da personagem, destas 300 páginas mais ou menos. A inspiração e a transpiração, a absorção e a transmissão ficam claras em alguns pontos. No entanto, pretendo focar em apenas um (ou dois, a depender da consideração do leitor).

Adriano, muito além de seus feitos, desde a construção de um anfiteatro em Itálica atéadriano optar pela via diplomática como resolução de questões com povos vizinhos, divulgou em Roma o Helenismo, fusão de culturas, a grega e a dos povos conquistados por Alexandre, o Grande. Este feito percorre suas vias. Um de seus grandes professores foi Sócrates [inspiração]. A cultura grega, acima de tudo, foi-lhe demasiado importante. Aprender sua língua e transmitir-lhe os conhecimentos com sabedoria e reflexão foi fundamental para a administração do Estado e de si [transpiração].

Aprendizagem [inspiração] e transmissão [transpiração]; o que toma para si [inspiração] e o que passa adiante [transpiração]; o que lhe é particular [inspiração] e o que lhe torna público [transpiração]. O trecho a seguir ilustra a educação precisa de Adriano, a que levou para frente de suas conquistas e a que levou para si ao longo de sua vida.

“Nada se compara à beleza de uma inscrição latina votiva ou funerária: umas poucas palavras gravadas sobre a pedra resumem com majestade impessoal tudo o que o mundo necessita saber de nós. Foi em latim que administrei o império; meu epitáfio será talhado em latim sobre a parede do meu mausoléu, às margens do Tibre, mas em grego terei vivido e pensado.” (p. 42)

Aí, tem-se clara a proposta de Adriano: transmitir para o mundo sua força administrativa, tendo consigo a capacidade de ser humano.

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Ser humano. Uma de suas competências é agir com racionalidade. O problema é que outros humanos, racionalmente ou não, costumam demandar propriedades divinas em alguns outros seres. Se isto acontece com Cristo, um dos maiores exemplos conhecidos, por que não haveria de acontecer com o comandante de um império? Para ser Deus coube aos seus seguidores/ súditos/ criadores elevá-los como tal. Mas para ser Humano cabe a um trabalho rigoroso, de intensa pesquisa e planejamento, bem como de um estilo fino e próprio, elaborado com precisão. É como nos presenteia Marguerite: com esta obra.

“Meu cavalo substituía as mil noções em torno do título, da posição e do nome, que complicam as relações humanas, pelo simples conhecimento do meu peso.” (p. 18)

Se alguém fosse capaz de criar, em primeira pessoa, o próprio relato de Cristo, talvez mostrasse o quão humano ele se sentia montado em um asno, dançando e bebendo em festas de casamento, apaixonando-se por alguém ou mesmo renunciando sacrificar-se por tantos que nunca ouviu falar, por sequer existirem. (Desconheço a leitura de A Última Tentação, de Nikos Kazantzákis, mas nem O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, cuja obra li, apresenta este artífice formal.)

Referência

YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Trad. Martha Calderaro. RJ: Nova Fronteira. (Coleção 50 anos)

EXTRA! EXTRA! O Jornal perdeu as nossas ilusões.

Será? Temo que a grande massa ainda seja, a cada dia, um pouco mais fisgada. Somos uma metáfora em ação: peixes deliciosos criados em cativeiro, servidos todos os dias aos nossos ricos e gordos empresários; alimentam-nos constantemente com aquilo que nos satisfaz, sem nos importarmos se é o que realmente necessitamos. E mesmo quando uma sardinha revoltada resolve pular fora do aquário, um gato vigilante, já à espreita, abocanha-o e a ordem é mantida. Não aprendemos nada das artimanhas da Revolução Industrial? Aprendamos, então, com as Ilusões Perdidas de Balzac.

Luciano de Rubempré, jovem poeta da província de Angoulême, sai de seu pequenoprt_200x259_1442304432 mundo para a grande capital a fim de conseguir fazer seu nome e construir seu legado como escritor. Poeta, e também romancista, traz em sua bagagem autores renomados ao longo da História da Literatura, tais como Walter Scott, Molière e Victor Hugo. Incompreendido em seu berço desloca-se até Paris, o centro das oportunidades, onde tudo é muito fácil. No entanto, nosso herói, de princípios éticos imaculados, conhece os horrores deste universo cruel.

O título não nos engana: toda a obra é uma enxurrada de ilusões perdidas, tanto por parte das personagens quanto nossas, pois, embora acompanhemos este espírito jovem e inocente atravessar os descaminhos da burguesia, desapontamo-nos ao percebermos os impecáveis labores do pequeno serem desarticulados através das luxuosas iguarias de um restaurante refinado e dos apelos da carne em troca da atenção que almejava desde o início.

Encontro-me na metade da obra, mas desde já é possível concordar com o lamento proferido por Oscar Wilde, em menção feita por Mario Vargas Llosa no capítulo Um d’A Orgia Perpétua: “A morte de Lucien de Rubempré é o grande drama da minha vida.” (p. 13) Fácil distinguir o que acontecerá com a personagem através desta frase: “Os jornalistas que tiverem triunfado serão substituídos por outros esfaimados de fome.” (BALZAC, p. 384) E tantas foram as vezes que nosso herói fora avisado, para não se envolver neste campo, por seus amigos críticos e escritores como ele… Mas o orgulho e a necessidade de tornar-se alguém por aquilo que tanto batalhou tornaram-lhe cego e suscetível às garras do que vem fácil, sem se importar com as consequências que viriam. Desvirtuado, tornou-se um peixinho de aquário.

As peculiaridades envoltas em um jornal surpreendem através da potência e precisão da Literatura balzaquiana. O novo mundo foi criado e nós reprisamos as palavras do criador. O mesmo desprezo, as mesmas informações e, claro, a mesma ausência de criticidade. Ou seria o contrário? A mesma bonomia às nossas querências, a mesma seriedade com relação àquilo que desejamos e, fato, a polidez extraordinária comungada com nossas opiniões, de tão críticos que somos? Pois um jornal possui agentes com uma única missão: conseguir mais assinantes. O que nos oferecem? Aquilo que desejamos. Notícias supérfluas ou de cunho desmoralizante. Ora, a seriedade passa ao largo. E os que apresentam o “trato” com as letras estão sempre atentos com o que corre em nosso meio, como “águias douradas” que adentram nossos recônditos mais vergonhosos. Falar de Literatura? Da boa Literatura? Só se houver algum retorno financeiro, pois tudo com ele [o jornal] é um negócio. Entre risos, sátiras, fofocas e crédito, o jornal fundamenta o seu espetáculo: levanta a lona, prepara o picadeiro e… este texto está militante demais!

Apesar de meu temor (e da relutância em utilizar este último termo e suas variantes), muitas são as sardinhas que fogem com destreza das presas do sistema. Não são e nem serão jamais enlatadas ou servidas frescas a um “esfaimado de fome”. No entanto, outras há que as substituam, e as derradeiras fugitivas serão vistas com maus olhos pelas que ficarem e que vierem depois, sendo tachadas de desordeiras. E assim a vida segue, até que se prove o contrário.

Referências

BALZAC, Honoré de. “Ilusões Perdidas”. In: A Comédia Humana: orientação, introduções e notas de Paulo Rónai. Tradução de Ernesto Pelanda e Mario Quintana. SP: Globo, 2013, vol. 7.

LLOSA, Mario Vargas. A Orgia Perpétua: Flaubert e Madame Bovary. Trad. José Rubens Siqueira. RJ: Alfaguara, 2015.

A Liberdade guiando o Condenado

Direitos Humanos, Democracia, Feminismo, Liberdade. Temas de grande impacto na atualidade. Temas de grande importância e de importante discussão. Temas que refletem um mundo de opções. Temas, cujas opções são espelhos, onde nos vemos a nós. Temas formadores de Ego. Temas capazes de entorpecer e confundir.

França, 1830. Auge da Revolução Francesa. Homens, mulheres e crianças lutando lado a lado em busca de direitos, de voz, de liberdade e de reconhecimento. Uma mulher, de braço erguido, empunhando a bandeira nacional, tendo seu pé à frente, com os seios a mostra, aponta o caminho olhando seu batalhão surrado e maltrapilho a lhe seguir, a única personagem de merecido destaque, iluminada o suficiente para que todos a vejam, que a desejem, que lutem por ela. Seu nome? Liberdade.

poussin123A tela de Eugène Delacroix (1798-1863), A liberdade guiando o povo (1830), tornou-se um marco para a Arte, que levantava questões de cunho social em parte da Europa Ocidental, além de seu enquadramento técnico (sombreamento, definição de contornos, plano de fundo etc.). O romantismo social francês ganhava forças à medida que importantes personalidades atuavam nos campos artísticos, políticos e filosóficos. Victor Hugo (1802-1885) foi autor de belos poemas e destacadas peças teatrais, mas seus romances formaram seu nome ao longo dos séculos. Obras como Os Miseráveis (1862), Os Trabalhadores do Mar (1866), O Homem que Ri (1869) entre outras mais, compõem seu material literário de aspecto social. No entanto, para este momento, para o qual estamos em grande conflito, abordar O Último Dia de um Condenado (1829) parece ser aquela onde a “liberdade” está para ser questionada.

Bicêtre.

Condenado à morte!

Já se vão cinco semanas que convivo com tal pensamento, sempre só com ele, sempre petrificado por sua presença, sempre encurvado sob seu peso!

Outrora, pois me parece que faz anos e não semanas, eu era um homem como outro qualquer. Cada dia, cada hora, cada minuto tinha sua idéia. Meu espírito, jovem e rico, era repleto de fantasias. Divertia-se em expô-las a mim, uma depois da outra, sem ordem e sem fim, bordando com infindáveis arabescos esse rude e frágil tecido da vida. Eram moças, esplêndidos mantos de bispo, batalhas vencidas, teatros cheios de barulho e de luz, e então mais moças e tranqüilas caminhadas noturnas sob os espessos galhos das castanheiras. Era sempre festa na minha imaginação. Eu podia pensar no que quisesse, era livre.

Agora sou cativo. Meu corpo está atado a grilhões em uma masmorra, meu espírito está preso a uma idéia. Uma horrível, sangrenta, implacável idéia! Restou-me apenas um pensamento, uma convicção, uma certeza: condenado à morte!

O que quer que eu faça, ele está sempre ali, esse pensamento infernal, como um espectro de chumbo a meu lado, solitário, ciumento, afastando qualquer distração, face a face com minha pessoa miserável, e sacudindo-me com duas mãos de gelo quando quero desviar a cabeça ou fechar os olhos. Ele se insinua sob todas as formas em que meu espírito gostaria de se esconder, mistura-se, como um refrão horrível, a todas as palavras que me dirigem, cola-se comigo nas grades hediondas de meu calabouço; importuna-me quando estou acordado, espreita meu sono convulsivo e reaparece em meus sonhos sob a forma de uma lâmina.

Acabo de acordar aos sobressaltos, perseguido por ele e dizendo a mim mesmo: ‘Ah! É só um sonho!’ Ora, antes mesmo que meus olhos pesados tenham tido tempo de se entreabrirem o suficiente para ver esse pensamento fatal inscrito na terrível realidade que me envolve, na laje úmida e enfadonha de minha cela, sob a pálida claridade de meu candeeiro, na trama grosseira da tela de minhas roupas, sobre a figura sombria do soldado de guarda cuja cartucheira reluz através da grade da masmorra, parece-me que uma voz já murmura em meus ouvidos:

– Condenado à morte!”

Direitos humanos, Democracia, Feminismo: Liberdade. Não, não se trata de a obrao-c3baltimo-dia-de-um-condenado-victor-hugo retratar um amargo período da História, os sangrentos abalos da lâmina ferina, da pena de morte como solução lamentável de uma situação crítica. Trata-se, antes, dos amargos julgamentos estabelecidos em sociedade, dos sangrentos abalos de nossa arma mais letal, a palavra. Trata-se, enfim, da atualidade presente nos gritos desse condenado à morte.

A história, narrada em primeira pessoa, é contada como uma espécie de epístola por um prisioneiro condenado à morte. O estilo, tão presente e tão vivo (como aconteceu com o jovem Werther, de Goethe), aproxima o leitor dos relatos da personagem. Esta é sua última semana e, nesta, já sem esperanças, conta os percalços que vive até o momento que lhe separa da realização da pena. Não há nada que revele seu crime, como lá chegou, mas lá está privado de “liberdade”.

Então, que fazer? Temo-lo tão próximo, mas o quanto dele nós podemos confiar? O que nos dá total segurança de dizer juntos, à leitura da obra, “condenado à morte”? Sim, pois é através da leitura que firmamos o pacto com a “liberdade”. Liberdade de fazermos o que quisermos, sem pensarmos nas conseqüências de nossos atos. A pena de morte não é admitida no Brasil, mas quantos desconhecidos já legamos ao fatídico destino? Certos de que a morte é nosso fim mais preciso o que faz de nós sermos capazes de antecipá-la a alguém?

A resposta já a temos: a palavra. A única guilhotina resistente ao tempo, capaz de fazer vir à tona eventos de séculos tão distantes. A única capaz de jogar o outro à fogueira, levar à forca… A única com poder suficiente de nos dar liberdade. Liberdade de sermos intolerantes, de acusarmos o outro por um defeito de cor, por uma religião distinta, por uma verdade não-identificada pelo eu e, portanto, tornada falsa. Quem são os condenados? Ora, basta que nos deparemos com o primeiro espelho a nos mirar. Todos nós somos condenados. Condenados à morte!

Caímos, por vezes, no grande equívoco de achar que somos os primeiros a pensar determinados questionamentos, a querer encerrar a crise nacional (e por que não mundial?) com a força de nossos braços, e, agora, com a rapidez e engenhosidade de um clique. Nada mais natural. Os louros são colhidos por nós, que sequer vivemos um terço dos nossos antepassados. Lutamos a mesma batalha? Obviamente que não. Mas devemos ser capazes de reconhecer que não somos originais.

Amy Foster – Joseph Conrad

Há tempos não tinha o prazer de me entorpecer com a leitura de pequenas novelas, contos, testículos enfim, providos de grande teor literário. Algumas se tornaram marcantes em meu espírito, como Noites Brancas, A Dócil, Gente Pobre, ambas de Fiódor Dostoiévski, exímio literato da Rússia do século XIX. (As três obras, anteriormente citadas, compõem o nosso catálogo de resenhas. Confira.) Retornar às leituras (e agora, espero, com atenta dedicação) de Joseph Conrad, este gênio da Literatura Inglesa do século XX, tão conhecido por suas grandes obras (No Coração das Trevas, Lord Jim, Nostromo, O Agente Secreto, A Loucura do Almayer, O Negro de Narciso) trouxe o alento de que precisava, opondo-se aos romances sagazes de quatrocentas páginas ou mais: rapidez.

Os dois autores aqui mencionados são, tanto para mim quanto à Literatura, duas figuras que conseguiram compartilhar os tormentos e percalços provenientes do Homem moderno, e que cada um viveu um pouco na pele tais atribulações, mas que, de igual modo, transformaram-nas em labor literário e, assim, em Arte. Ambos foram selecionados a dedo para comporem mais este trabalho, pois qual não foi o meu espanto ao saber que Conrad, pelas palavras de André Gide, na Introdução desta edição, “a menor menção do nome Dostoiévski o fazia empalidecer.” E mais: “Detestava-o cordialmente”. Mas também outras palavras de Gide reforçam meu pensamento: “[…] com [Dostoiévski], no entanto, não deixava de apresentar certas semelhanças.” Foram estrangeiros em terras distintas, mas encontraram nas trevas o mistério inerente a cada ser pensante.

Obviamente que o estilo de escrita de Conrad é sem comparação com a do russo. Há certa leveza na seleção de suas palavras, ao mesmo tempo em que elas são repletas de horror, o mesmo pronunciado pelo coronel Kurtz. A precisão é tamanha que leva o leitor a navegar juntamente à personagem, sentir o peso da narrativa em cada naufrágio, em cada lapso de desespero sentido por cada vestígio de abandono que se aproxima, sem chances de compreensão, implacável, sem misericórdia.

“Imaginação” é a palavra que circula por toda a novela. O único sobrevivente de um9788571063525 naufrágio consegue se refugiar numa terra estranha, vendo-se recluso pelos seus modos, sua língua, seu jeito oblongo e desajeitado de caminhar, tratado como um animal selvagem, conhecendo Amy Foster, mulher que possui imaginação suficiente para lidar com ele, de lhe estender a mão, ao ponto de se apaixonarem, casarem, terem um filho… e a imaginação se esvair. A narrativa é contada por dois narradores habitantes de Brenzett, em que o segundo deles, doutor Kennedy, conta ao primeiro o que ocorreu ao sensível estrangeiro.

A quem já se aventurou com o “romance sentimental” dostoievskiano, Biélye Nótchi (Noites Brancas), lembrar-se-á do generoso e solitário narrador e a rapariga sonhadora Nástienka, cuja “imaginação” estropia as quatro noites de seu novo amigo, indo embora com seu porto seguro. Konrad, polonês, exilado, adota o nome Conrad ao se encontrar em terras inglesas, das quais aprendera o idioma e, nelas, tornara-se escritor; Dostoiévski, habitante de Moscou, parte para São Petersburgo a fim de prosseguir em seus estudos, percebendo a saraivada agitação da cidade em contraste com o isolamento de alguns indivíduos. É inegável, dessa forma, dizer que ambos se utilizaram deste sentimento de estrangeiro para compor suas obras.

[…] Ah, ele era diferente: um coração inocente e cheio de uma boa vontade que ninguém queria, esse náufrago, que, igual a um homem transplantado para outro planeta, estava separado de seu passado por um espaço imenso, e de seu futuro, por uma imensa ignorância. Sua fala rápida, vigorosa, positivamente chocava todo mundo. ‘Um demônio nervoso’, era como o qualificavam. […].” (CONRAD, p. 48)

Este é Conrad: implacável, sem misericórdia!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONRAD, Joseph. Amy Foster. Trad. Julieta Cupertino. RJ: Revan, 2007.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Noites Brancas. Trad. Nivaldo dos Santos. SP: Editora 34, 2009.

Novembro – Gustave Flaubert

Não vemos aí Flaubert. Quero dizer, não se vê nesta obra vestígio algum daquele visto em Madame Bovary (1857). Mas, vamos lá, é preciso reconsiderar os clangores desafinados dedicados a esta sinfonia do amor platônico.

Assim afirma à sua amante, Louise Colet: “Novembro foi o fecho da minha juventude.”eccdeadf-f98f-43d6-908c-74d6a1a38f94 Fato. Quinze anos após esta escrita Flaubert lança seu grande romance. Entretanto, por não ser de Emma que falamos, voltemos ao caso: Gustave tinha apenas vinte anos de idade quando escreveu Novembro (1842). Detalhe: a obra fora a última a ser lançada. Seus amigos e críticos o motivaram a publicá-la ao término de sua redação, mas ele não a quis. Preferiu deixá-la guardada por mais alguns anos. Sorte que ninguém a esqueceu, pois este é o passo a passo do desenvolvimento da escrita do autor.

A obra literária confunde-se com a própria vida do autor, pois muitos dos caminhos percorridos pelo narrador inicial – são dois – também foram traçados por Flaubert anos depois, como uma previsão.

Um caso interessante também se desenvolve com relação ao seu labor artístico. Percebemos durante a leitura que as palavras ainda não são as trabalhadas com bastante afinco do seu projeto das palavras exatas – Le mot juste. São várias as passagens que o narrador evoca sonhos mirabolantes, paradoxos constantes etc. Mas é daqui que nasce Marie, uma prostituta infeliz, fonte de prazer e sensualidade, mas ao mesmo tempo sensível e sofrida com as experiências vividas com outros homens. A mulher que irá percorrer toda a vida e obra do autor, concebendo, portanto, a Sra. Bovary.

Os narradores que nascem – e morrem – ao longo da narrativa são fundamentais. O primeiro, em primeira pessoa; o segundo, em terceira, apresentando o posfácio do primeiro. Flaubert opta por tal decisão a fim de aprimorar o seu estilo de escrita, algo que podemos de chamar de “transição”. Nas palavras de Sérgio Medeiros, tradutor e apresentador da Introdução desta edição:

“Escrito sem maiores dificuldades e contendo numerosas passagens autobiográficas, esse livro talvez pudesse ser considerado como uma obra de transição entre a escrita fácil e a difícil, entre o autor visível e o invisível, cujo ocultamento mais radical será logrado apenas em Madame Bovary e em ‘Um coração simples’, obras da maturidade.” (p. 10)

Dessa forma, é possível discernirmos sobre a existência de dois Flaubert’s, antes e depois de Madame Bovary?, é o que nos questiona Sérgio Medeiros. Tiremos nossas conclusões.

 

P.S.: A edição conta com as cartas enviadas a Louis Bouilhet, seu amigo e crítico, que não foram lidas e, portanto, não referenciadas por este que vos escreve. Em outro momento dedicar-me-ei a elas, com possível exposição no blog. Ça va?

REFERÊNCIA

FLAUBERT, Gustave. Novembro, seguido de Treze cartas ao Oriente a Louis Bouilhet. Tradução, introdução e notas de Sérgio Medeiros. SP: Iluminuras, 2000.

Sobre a Leitura – Marcel Proust

Lerei novamente!

Que maravilha foi a existência de Marcel Proust! Que maravilha!

Não tenho em mente nenhum outro autor que houvera laborado tão indistintamente em19225466_1963402233879131_350045278937620881_n todos os seus escritos. Ele é, entre o que seria um simples prefácio e sua obra maior, decididamente o mesmo.

Vive, em cada pequena frase, em cada pequeno trecho, o engrandecimento loquaz de um espírito em disposição. Não há, como ele mesmo diz, a menor possibilidade de “Conclusão” durante a leitura desta, que é a sua vida. Existem muito mais “Incitações”. O leitor, voraz, devorador determinado de calhamaços, estancou por pelo menos dois meses em um livrinho de 60 (sessenta) páginas. Livrinho não, livraço!

Esta forma assenta-lhe bem a composição: capa, contracapa e páginas constituem-lhe a identificação de alguns miligramas. Mas as palavras, ah!, são elas, fundidas com fogo, intensas em cada menção – Racine, Dante, Shakespeare, Cervantes, Homero, Ovídio etc. –, em cada junção sintática, em cada escolha precisa de termos e expressões, em cada fluidez de alma cunhada no escopo do título – Sobre a Leitura –, cada detalhe implementa-lhe toneladas de consciência e clarividência.

19030569_1963402257212462_7492257050908830602_nSinto dizer que nem Flaubert nem Dostoiévski têm a precisão de Proust. (Também pudera, eles não o foram, nem serão. Salve!) Mas, convenhamos, a comparação é injusta, principalmente quando se trata do criterioso Sr. D. Recluso em seu subsolo, faz da sua Literatura, literalmente, seu grito ufanista de degradado, sobrevivente da Sibéria que lhe mostrou um mundo miserável, egoísta e trapaceiro. Morto, apresentou suas memórias; fora humilhado e ofendido. Mas, qual o quê! “Na China eu escreveria tão bem; aqui [Rússia, grifo meu] é tudo muito mais difícil. Lá há mil anos está tudo previsto e calculado; aqui há mil anos está tudo de pernas para o ar. […] Aqui, para ser lido, o mais eficaz é escrever de maneira incompreensível.” (DOSTOIÉVSKI, p. 23). Jamais abandonou o posto; incomodou o máximo que pôde (e incomoda). Suas palavras tornaram-se lâminas enferrujadas, mas bastante amoladas. Foram momentos diferentes, épocas diferentes, revoluções diferentes.

À Flaubert não há desculpas. “À la recherche du mot juste” [“Em busca da palavra justa”], saciou a Literatura com sua obra magna, Madame Bovary. Através da palavra precisa tornou-a perfeita, divina, arte. Entretanto, nada lhe apareceu como num lance mágico. Sentiu-se desolado com a crítica aferrada às Tentações de Santo Antonio vinda de seus amigos. Pergunto-me sobre o que houve, que transformação, que estalo lhe ocorreu em Novembro, ao decidir pela morte do narrador subjetivo, optando pelo objetivo… Nascia um novo Flaubert. Mas…

Ambos apresentam um momento deveras historicista, outrora violento/criativo da19149023_1963402293879125_5267414278789302628_n linguagem. Proust, ao contrário, provoca. Dá-nos o universo. Mais lhe vale o conhecimento que a apreciação, porque este é seu modus operandi.  Explica-se, assim, o motivo de não o conseguirmos deixar. É o infinito que lemos.

Por isso digo: lerei novamente! Não por falta de outros escritos – afinal, nada mais instigante saber que passarei novamente pelo episódio crucial da madeleine e da xícara de chá, mesmo abatido por não ser mais capaz de apreender a mesma experiência, o maquinismo de buscar em minha boca os vestígios do bolinho e da bebida, com a língua a serpentear-me os dentes –, mas pela obrigação de retornar, de recriar, de renascer em Proust. E juro não fazer um trocadilho espinhento sequer a certa religião. Proust vive em nós, Aleluia! Ressuscitará, ele, algum dia? Deixara, ele, subentendido isto em alguma letrinha miúda?

Lerei novamente!

Referências

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. “Introdução”. In: Diário de um escritor (1873): meia carta de um sujeito. Trad. Moissei e Daniela Mountian. SP: Hedra, 2016.

PROUST, Marcel. Sobre a Leitura. Trad. Carlos Vogt. SP: Pontes, 1991.

Uma História Lamentável, Fiódor Dostoiévski.

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Mover este amor indescritível por Dostoiévski para frente é simplesmente entorpecedor a cada nova leitura, a cada nova descoberta. Encontrei esta pequena narrativa sua em uma biblioteca e, por ser curtinho, devorei-o em minutos. Mas Dostoiévski é só um e único, então já pode imaginar o que também vos espera.

Uma História Lamentável conta a breve aventura de um liberal juntamente com sua ideia apaixonadamente cega. Iván Ilítch Pralínskii é um jovem de alto cargo. É o Conselheiro de Estado da Rússia. Vindo de boa família, estudou nos melhores colégios e teve bom êxito em seu cargo, tornando-se general muito novo. Bastante rico, mas de uma imaginação excessiva e exagerada. Adotou para si as novas ideias liberais da Rússia, o que o cativou bastante.

A ideia lidava com o tema “humanidade”. Entoava eloquente a assertiva que a humanidade irá salvar o mundo, humanidade em sociedade, tratados de igual para igual, sem distinção de classes, “que são homens como nós!”, a humanidade do mais alto funcionário ao menor deles, e explica de que forma pode levar isso a público.

“Formulemos um silogismo: eu sou humano, logo sou amado. Amam-me, logo têm confiança em mim. Se têm confiança em mim, é porque acreditam em mim; se acreditam em mim, logo me amam… […] se acreditam em mim, acreditarão também na reforma, e esse é o ponto capital da questão: todos se abraçarão moralmente e a coisa se fará de um modo amistoso e fundamental.”

Mas três palavrinhas arrasariam completamente a ideia que adotara.

“– Nós não suportaremos.”

“Nós não suportaremos!” Mais tarde essas palavras fariam completo sentido para o visionário Pralínskii. Mais tarde ele poria em prática tudo o que obstinava ser de então por diante; provar aos demais que “não suportar” significa render-se a um sistema imutável que exige homens que mandem e homens que obedeçam. Seguiu em frente e provou da própria ideia.

Entrou na festa de casamento de um de seus funcionários pobres sem ser convidado, provocou temor, como bem previra, em todos, mas logo anunciou seu lance de paz e pediu que os demais continuassem os festejos. Manteve aproximação da forma que os camponeses mantêm, através da bebida livre e contos de causos. Então o ambiente voltou ao movimento normal, implicando no esquecimento do alto chefe, o que nada lhe agradou. Resolveu expor suas ideias para chamar de volta a atenção. Mas o retorno não foi bem o esperado.

“[…] O senhor veio aqui para se exibir e ganhar popularidade. […] o senhor veio aqui para exibir a sua humanidade. O senhor estragou a nossa festa. Embebedou-se de champanha sem pensar que champanha é uma bebida cara demais para um modesto funcionário que ganha apenas dez rublos por mês.”

O choque lhe foi profundo. Tentou retirar-se do local, mas, por um tombo, desmaiou. Acordou no outro dia arrebatado com o dia anterior. Volta ao trabalho após longos oito dias de reflexão sobre aquela verdade cruel e como lidar com ela da melhor forma. O resultado da reflexão o fez afundar-se em grande desalento e vergonha.

“[…] Severidade, severidade e só severidade!”

Comentar este conto sem citar a máxima de Maquiavel é como se se esquecesse do principal:

“Disso surge uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é que seria necessário ser uma coisa e outra, mas, como é difícil reuni-las, é muito mais seguro ser temido do que amado, quando se deve renunciar a uma das duas.”

“– Não suportei!”

Fim do conto.

Bibliografia

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Uma história lamentável. Tradução de Gulnara Lobato de Morais Pereira. RJ: Paz e Terra, 1996.

MAQUIAVEL, Niccolò Maquiavelli. O Príncipe. Tradução de Ciro Mioranza. SP: Editora Escala, 2008.

Gente Pobre, Fiódor Dostoiévski.

Ao citarmos o nome de grandes mestres da Literatura, por vezes lembramos seus feitos mais renomados e esquecemos as que não são de grande destaque, principalmente as obras iniciais, e isso é um erro gravíssimo, pois estas também compõem o escopo literário do autor. Por exemplo, quando falamos de Dostoiévski, imediatamente o remetemos a Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov, Memórias do Subsolo etc., deixando de lado, ou mesmo desconhecendo, obras como A Aldeia de Stepántchikovo, O Crocodilo e até a sua obra primária, Gente Pobre, que apresento nestes breves comentários.

Esse pequeno romance epistolar conta a singela relação entre Makar Diévuchkin, um copista de umagente-pogre repartição pública, e uma jovem órfã, Varvara Alieksiêievna, a quem ele ajuda como pode. Estes dois grandes amigos, que se tratam tão carinhosamente – “minha pombinha”, “inestimável amiguinha”, “minha filha” etc. – passam pelos seus conflitos diários, mas aliviam-se enviando cartas um ao outro, numa forma de se manterem mais próximos e unidos, já que não moram juntos. Entretanto, a pobre Várienka se vê encurralada com uma proposta que poderá mudar sua vida para melhor, mas o dilema de se afastar de seu grande amigo, Makar, a deixa confusa.

Em 1846, ano em que foi lançada a obra, Bielínski, grande crítico da época, atribuiu ao romance “a primeira tentativa de se fazer um romance social” no país, embora outros autores tenham abordado a temática em contos famosos. Um exemplo é o conto “O capote”, de Gógol, citado em Gente Pobre como uma obra praticamente sem prestígio, por parte de Makar, que não lhe representa, já que a obra fala de Akáki Akákievitch, uma personagem também copista de uma repartição pública, que sofre os maiores tormentos por causa de seu capote roubado violentamente e da dita “alta personalidade”, que o desconsidera com intensidade. Há, de fato, certa semelhança entre esses dois personagens, até nos deparamos com a maestria de Dostoiévski. Gógol nos apresenta uma personagem sem voz e consciência próprias, que se deixa levar pelas intempéries e acasos de sua pobreza até à morte, enquanto Dostoiévski faz o oposto. Ele dá voz e, consequentemente, vida às suas personagens, apontando-lhes considerável importância e classe no meio literário. Com Gente Pobre Dostoiévski ganhou destaque na crítica russa, tornando-se um escritor consagrado desde então.

Mas, afinal, Gente Pobre ou Pobre Gente? De acordo com o título original, Biédnie liúdi, Pobre Gente seria a tradução ideal, de modo que ressaltaria a condição dos personagens, enfatizando a precariedade vivida por elas. Assim explica a professora de Língua e Literatura Russa da USP (Universidade de São Paulo) e tradutora pela Editora 34, Fátima Bianchi:

“É evidente seu paralelismo com o título da novela Biédnaia Liza (Pobre Liza), de Karamzin, na qual o adjetivo ‘biédnie’, além de se referir diretamente ao estado de pobreza material da personagem, remete a um sentido moral, de comiseração, pela grande compaixão que seu destino infeliz inspira no leitor. […] A opção pela ordem direta em português se deu mais por uma questão de eufonia e só foi feita após um estudo minucioso das duas possibilidades de sua tradução, que levou em consideração a intenção de toda a obra.”

Bibliografia

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Gente Pobre. Tradução, posfácio e notas de Fátima Bianchi. SP: Editora 34, 2009.

O Idiota, Fiódor Dostoiévski.

Acabo de concluir a leitura d’O Idiota. Deixei passar muito da essência do Dostoiévski, que está refletidao_idiota_traduzido_direto_do_russo não somente no príncipe Míchkin, um dos personagens primários do romance, mas também em Hippolit, uma personagem jovem atacado pela tísica que despreza maquinalmente a bondade e compaixão do príncipe. Na verdade, boa parte dos personagens presentes na obra, tais como o general Ívolguin, a Aglaia Iepántchina e a tão misteriosa Nastácia Filíppovna, desprezam a compaixão que os demais sentem por eles. Mas, por hora, vamos ao início.

Das palavras de Boris Schnaiderman, crítico e tradutor de algumas obras de Dostoiévski, faço as minhas:

“[…] indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado.”

Entretanto, o que há de idiota no príncipe, há de observador. Míchkin tem noção de que as pessoas o consideram um idiota, mas não liga a mínima importância a isto.

“’Pois bem, me consideram idiota, mas apesar de tudo eu sou inteligente e eles nem adivinham… ’.” (p. 100).

O príncipe Míchkin, tal qual o Cristo, próprio da criação de Dostoiévski, apresenta em sua personalidade a dúbia relação do positivo com o negativo. Positivo por saber como se relacionar com as pessoas; negativo pelo mesmo motivo. Em vários momentos da obra suas exclamações demonstram uma sinceridade incômoda e extremada. Fala de temas polêmicos, como a pena de morte, a situação econômica da Rússia, que “a beleza salvará o mundo”, discurso este que é próprio de Dostoiévski. Também o mix sobre o que seria real e imaginário próprio do cavaleiro andante Dom Quixote, relacionado ao poema de Púchkin, “O cavaleiro pobre”, também se faz presente no personagem. Dele, observamos a paixão nobre e humilde por Dulcineia del Toboso em contraste com a soberania e altivez da gravíssima Nastácia Filíppovna.

Pela característica intencional no príncipe Míchkin, encontramos bastante relação com demais passagens bíblicas. Por exemplo, seu encontro com a jovem Marie, a pequena criatura indesejada e desprezada por todos, tem uma forte ligação com a passagem bíblica de Maria Madalena quase sendo apedrejada pela população, e, por intermédio do príncipe, ou melhor, do Cristo, torna-se uma mulher curada do seu “pecado”. Além de sua passagem no horto das Oliveiras, entre aceitar ou não a “cruz” que é Nastácia Filíppovna etc. Entretanto, nada se compara ao discurso michkiniano/dostoievskiano sobre o Cristo da cultura Ocidental.

“– Uma fé não cristã, em primeiro lugar! […]; em segundo, o Catolicismo romano é até pior do que o próprio ateísmo, é essa a minha opinião! […] O ateísmo também prega o nada, mas o Catolicismo vai além: prega um Cristo deformado, que ele mesmo denegriu e profanou, um Cristo oposto! Ele prega o anticristo, eu lhe juro, lhe asseguro! […]” (p. 607)

Passei dias intrigado com esta passagem, e ainda estou. Acredito que muitos, após lerem esse discurso, irão se perguntarem se se trata de alguma heresia advinda do próprio escritor. Contudo, há que se pensar no momento pós-Sibéria de Dostoiévski e no costume cristão ortodoxo na Rússia. Mesmo assim, ainda é muito chocante.

Por fim, parafraseio a filosofia da personagem machadiana, Quincas Borba: ao príncipe Míchkin uma palavra – Idiota!

Bibliografia

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Tradução de Paulo Bezerra. SP: Editora 34, 2002.