Acabo de concluir a leitura d’O Idiota. Deixei passar muito da essência do Dostoiévski, que está refletida não somente no príncipe Míchkin, um dos personagens primários do romance, mas também em Hippolit, uma personagem jovem atacado pela tísica que despreza maquinalmente a bondade e compaixão do príncipe. Na verdade, boa parte dos personagens presentes na obra, tais como o general Ívolguin, a Aglaia Iepántchina e a tão misteriosa Nastácia Filíppovna, desprezam a compaixão que os demais sentem por eles. Mas, por hora, vamos ao início.
Das palavras de Boris Schnaiderman, crítico e tradutor de algumas obras de Dostoiévski, faço as minhas:
“[…] indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado.”
Entretanto, o que há de idiota no príncipe, há de observador. Míchkin tem noção de que as pessoas o consideram um idiota, mas não liga a mínima importância a isto.
“’Pois bem, me consideram idiota, mas apesar de tudo eu sou inteligente e eles nem adivinham… ’.” (p. 100).
O príncipe Míchkin, tal qual o Cristo, próprio da criação de Dostoiévski, apresenta em sua personalidade a dúbia relação do positivo com o negativo. Positivo por saber como se relacionar com as pessoas; negativo pelo mesmo motivo. Em vários momentos da obra suas exclamações demonstram uma sinceridade incômoda e extremada. Fala de temas polêmicos, como a pena de morte, a situação econômica da Rússia, que “a beleza salvará o mundo”, discurso este que é próprio de Dostoiévski. Também o mix sobre o que seria real e imaginário próprio do cavaleiro andante Dom Quixote, relacionado ao poema de Púchkin, “O cavaleiro pobre”, também se faz presente no personagem. Dele, observamos a paixão nobre e humilde por Dulcineia del Toboso em contraste com a soberania e altivez da gravíssima Nastácia Filíppovna.
Pela característica intencional no príncipe Míchkin, encontramos bastante relação com demais passagens bíblicas. Por exemplo, seu encontro com a jovem Marie, a pequena criatura indesejada e desprezada por todos, tem uma forte ligação com a passagem bíblica de Maria Madalena quase sendo apedrejada pela população, e, por intermédio do príncipe, ou melhor, do Cristo, torna-se uma mulher curada do seu “pecado”. Além de sua passagem no horto das Oliveiras, entre aceitar ou não a “cruz” que é Nastácia Filíppovna etc. Entretanto, nada se compara ao discurso michkiniano/dostoievskiano sobre o Cristo da cultura Ocidental.
“– Uma fé não cristã, em primeiro lugar! […]; em segundo, o Catolicismo romano é até pior do que o próprio ateísmo, é essa a minha opinião! […] O ateísmo também prega o nada, mas o Catolicismo vai além: prega um Cristo deformado, que ele mesmo denegriu e profanou, um Cristo oposto! Ele prega o anticristo, eu lhe juro, lhe asseguro! […]” (p. 607)
Passei dias intrigado com esta passagem, e ainda estou. Acredito que muitos, após lerem esse discurso, irão se perguntarem se se trata de alguma heresia advinda do próprio escritor. Contudo, há que se pensar no momento pós-Sibéria de Dostoiévski e no costume cristão ortodoxo na Rússia. Mesmo assim, ainda é muito chocante.
Por fim, parafraseio a filosofia da personagem machadiana, Quincas Borba: ao príncipe Míchkin uma palavra – Idiota!
Bibliografia
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Tradução de Paulo Bezerra. SP: Editora 34, 2002.