Memórias de Adriano – Marguerite Yourcenar

É a primeira vez que percebo um livro respirar. Não é o tipo de respiração comum, como sentir o fluxo de ar passando pelas narinas, chegando aos pulmões e saindo pela boca, enfim, um movimento involuntário do corpo. Uma respiração diferente. Uma respiração pelas palavras.

Ser influenciado antecipadamente pela grandeza da obra de Marguerite Yourcenar, talvez a sua de maior renome (li A Obra em Negro há algum tempo e, desde então, considero-a como obra cânone), inspire minha leitura para novas descobertas, experiências que um olhar mais racional também é capaz de notar. Estar diante de um livro-vivo é saber-se responsável por esta vida a partir de seu índice.

Como o próprio livro indica, trata-se das Memórias de Adriano, um dos cinco grandes imperadores de Roma, e, assim, é uma obra escrita em primeira pessoa. Acredito que este aspecto formal denote mais ainda a respiração, se não da personagem, destas 300 páginas mais ou menos. A inspiração e a transpiração, a absorção e a transmissão ficam claras em alguns pontos. No entanto, pretendo focar em apenas um (ou dois, a depender da consideração do leitor).

Adriano, muito além de seus feitos, desde a construção de um anfiteatro em Itálica atéadriano optar pela via diplomática como resolução de questões com povos vizinhos, divulgou em Roma o Helenismo, fusão de culturas, a grega e a dos povos conquistados por Alexandre, o Grande. Este feito percorre suas vias. Um de seus grandes professores foi Sócrates [inspiração]. A cultura grega, acima de tudo, foi-lhe demasiado importante. Aprender sua língua e transmitir-lhe os conhecimentos com sabedoria e reflexão foi fundamental para a administração do Estado e de si [transpiração].

Aprendizagem [inspiração] e transmissão [transpiração]; o que toma para si [inspiração] e o que passa adiante [transpiração]; o que lhe é particular [inspiração] e o que lhe torna público [transpiração]. O trecho a seguir ilustra a educação precisa de Adriano, a que levou para frente de suas conquistas e a que levou para si ao longo de sua vida.

“Nada se compara à beleza de uma inscrição latina votiva ou funerária: umas poucas palavras gravadas sobre a pedra resumem com majestade impessoal tudo o que o mundo necessita saber de nós. Foi em latim que administrei o império; meu epitáfio será talhado em latim sobre a parede do meu mausoléu, às margens do Tibre, mas em grego terei vivido e pensado.” (p. 42)

Aí, tem-se clara a proposta de Adriano: transmitir para o mundo sua força administrativa, tendo consigo a capacidade de ser humano.

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Ser humano. Uma de suas competências é agir com racionalidade. O problema é que outros humanos, racionalmente ou não, costumam demandar propriedades divinas em alguns outros seres. Se isto acontece com Cristo, um dos maiores exemplos conhecidos, por que não haveria de acontecer com o comandante de um império? Para ser Deus coube aos seus seguidores/ súditos/ criadores elevá-los como tal. Mas para ser Humano cabe a um trabalho rigoroso, de intensa pesquisa e planejamento, bem como de um estilo fino e próprio, elaborado com precisão. É como nos presenteia Marguerite: com esta obra.

“Meu cavalo substituía as mil noções em torno do título, da posição e do nome, que complicam as relações humanas, pelo simples conhecimento do meu peso.” (p. 18)

Se alguém fosse capaz de criar, em primeira pessoa, o próprio relato de Cristo, talvez mostrasse o quão humano ele se sentia montado em um asno, dançando e bebendo em festas de casamento, apaixonando-se por alguém ou mesmo renunciando sacrificar-se por tantos que nunca ouviu falar, por sequer existirem. (Desconheço a leitura de A Última Tentação, de Nikos Kazantzákis, mas nem O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, cuja obra li, apresenta este artífice formal.)

Referência

YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Trad. Martha Calderaro. RJ: Nova Fronteira. (Coleção 50 anos)

EXTRA! EXTRA! O Jornal perdeu as nossas ilusões.

Será? Temo que a grande massa ainda seja, a cada dia, um pouco mais fisgada. Somos uma metáfora em ação: peixes deliciosos criados em cativeiro, servidos todos os dias aos nossos ricos e gordos empresários; alimentam-nos constantemente com aquilo que nos satisfaz, sem nos importarmos se é o que realmente necessitamos. E mesmo quando uma sardinha revoltada resolve pular fora do aquário, um gato vigilante, já à espreita, abocanha-o e a ordem é mantida. Não aprendemos nada das artimanhas da Revolução Industrial? Aprendamos, então, com as Ilusões Perdidas de Balzac.

Luciano de Rubempré, jovem poeta da província de Angoulême, sai de seu pequenoprt_200x259_1442304432 mundo para a grande capital a fim de conseguir fazer seu nome e construir seu legado como escritor. Poeta, e também romancista, traz em sua bagagem autores renomados ao longo da História da Literatura, tais como Walter Scott, Molière e Victor Hugo. Incompreendido em seu berço desloca-se até Paris, o centro das oportunidades, onde tudo é muito fácil. No entanto, nosso herói, de princípios éticos imaculados, conhece os horrores deste universo cruel.

O título não nos engana: toda a obra é uma enxurrada de ilusões perdidas, tanto por parte das personagens quanto nossas, pois, embora acompanhemos este espírito jovem e inocente atravessar os descaminhos da burguesia, desapontamo-nos ao percebermos os impecáveis labores do pequeno serem desarticulados através das luxuosas iguarias de um restaurante refinado e dos apelos da carne em troca da atenção que almejava desde o início.

Encontro-me na metade da obra, mas desde já é possível concordar com o lamento proferido por Oscar Wilde, em menção feita por Mario Vargas Llosa no capítulo Um d’A Orgia Perpétua: “A morte de Lucien de Rubempré é o grande drama da minha vida.” (p. 13) Fácil distinguir o que acontecerá com a personagem através desta frase: “Os jornalistas que tiverem triunfado serão substituídos por outros esfaimados de fome.” (BALZAC, p. 384) E tantas foram as vezes que nosso herói fora avisado, para não se envolver neste campo, por seus amigos críticos e escritores como ele… Mas o orgulho e a necessidade de tornar-se alguém por aquilo que tanto batalhou tornaram-lhe cego e suscetível às garras do que vem fácil, sem se importar com as consequências que viriam. Desvirtuado, tornou-se um peixinho de aquário.

As peculiaridades envoltas em um jornal surpreendem através da potência e precisão da Literatura balzaquiana. O novo mundo foi criado e nós reprisamos as palavras do criador. O mesmo desprezo, as mesmas informações e, claro, a mesma ausência de criticidade. Ou seria o contrário? A mesma bonomia às nossas querências, a mesma seriedade com relação àquilo que desejamos e, fato, a polidez extraordinária comungada com nossas opiniões, de tão críticos que somos? Pois um jornal possui agentes com uma única missão: conseguir mais assinantes. O que nos oferecem? Aquilo que desejamos. Notícias supérfluas ou de cunho desmoralizante. Ora, a seriedade passa ao largo. E os que apresentam o “trato” com as letras estão sempre atentos com o que corre em nosso meio, como “águias douradas” que adentram nossos recônditos mais vergonhosos. Falar de Literatura? Da boa Literatura? Só se houver algum retorno financeiro, pois tudo com ele [o jornal] é um negócio. Entre risos, sátiras, fofocas e crédito, o jornal fundamenta o seu espetáculo: levanta a lona, prepara o picadeiro e… este texto está militante demais!

Apesar de meu temor (e da relutância em utilizar este último termo e suas variantes), muitas são as sardinhas que fogem com destreza das presas do sistema. Não são e nem serão jamais enlatadas ou servidas frescas a um “esfaimado de fome”. No entanto, outras há que as substituam, e as derradeiras fugitivas serão vistas com maus olhos pelas que ficarem e que vierem depois, sendo tachadas de desordeiras. E assim a vida segue, até que se prove o contrário.

Referências

BALZAC, Honoré de. “Ilusões Perdidas”. In: A Comédia Humana: orientação, introduções e notas de Paulo Rónai. Tradução de Ernesto Pelanda e Mario Quintana. SP: Globo, 2013, vol. 7.

LLOSA, Mario Vargas. A Orgia Perpétua: Flaubert e Madame Bovary. Trad. José Rubens Siqueira. RJ: Alfaguara, 2015.