EXTRA! EXTRA! O Jornal perdeu as nossas ilusões.

Será? Temo que a grande massa ainda seja, a cada dia, um pouco mais fisgada. Somos uma metáfora em ação: peixes deliciosos criados em cativeiro, servidos todos os dias aos nossos ricos e gordos empresários; alimentam-nos constantemente com aquilo que nos satisfaz, sem nos importarmos se é o que realmente necessitamos. E mesmo quando uma sardinha revoltada resolve pular fora do aquário, um gato vigilante, já à espreita, abocanha-o e a ordem é mantida. Não aprendemos nada das artimanhas da Revolução Industrial? Aprendamos, então, com as Ilusões Perdidas de Balzac.

Luciano de Rubempré, jovem poeta da província de Angoulême, sai de seu pequenoprt_200x259_1442304432 mundo para a grande capital a fim de conseguir fazer seu nome e construir seu legado como escritor. Poeta, e também romancista, traz em sua bagagem autores renomados ao longo da História da Literatura, tais como Walter Scott, Molière e Victor Hugo. Incompreendido em seu berço desloca-se até Paris, o centro das oportunidades, onde tudo é muito fácil. No entanto, nosso herói, de princípios éticos imaculados, conhece os horrores deste universo cruel.

O título não nos engana: toda a obra é uma enxurrada de ilusões perdidas, tanto por parte das personagens quanto nossas, pois, embora acompanhemos este espírito jovem e inocente atravessar os descaminhos da burguesia, desapontamo-nos ao percebermos os impecáveis labores do pequeno serem desarticulados através das luxuosas iguarias de um restaurante refinado e dos apelos da carne em troca da atenção que almejava desde o início.

Encontro-me na metade da obra, mas desde já é possível concordar com o lamento proferido por Oscar Wilde, em menção feita por Mario Vargas Llosa no capítulo Um d’A Orgia Perpétua: “A morte de Lucien de Rubempré é o grande drama da minha vida.” (p. 13) Fácil distinguir o que acontecerá com a personagem através desta frase: “Os jornalistas que tiverem triunfado serão substituídos por outros esfaimados de fome.” (BALZAC, p. 384) E tantas foram as vezes que nosso herói fora avisado, para não se envolver neste campo, por seus amigos críticos e escritores como ele… Mas o orgulho e a necessidade de tornar-se alguém por aquilo que tanto batalhou tornaram-lhe cego e suscetível às garras do que vem fácil, sem se importar com as consequências que viriam. Desvirtuado, tornou-se um peixinho de aquário.

As peculiaridades envoltas em um jornal surpreendem através da potência e precisão da Literatura balzaquiana. O novo mundo foi criado e nós reprisamos as palavras do criador. O mesmo desprezo, as mesmas informações e, claro, a mesma ausência de criticidade. Ou seria o contrário? A mesma bonomia às nossas querências, a mesma seriedade com relação àquilo que desejamos e, fato, a polidez extraordinária comungada com nossas opiniões, de tão críticos que somos? Pois um jornal possui agentes com uma única missão: conseguir mais assinantes. O que nos oferecem? Aquilo que desejamos. Notícias supérfluas ou de cunho desmoralizante. Ora, a seriedade passa ao largo. E os que apresentam o “trato” com as letras estão sempre atentos com o que corre em nosso meio, como “águias douradas” que adentram nossos recônditos mais vergonhosos. Falar de Literatura? Da boa Literatura? Só se houver algum retorno financeiro, pois tudo com ele [o jornal] é um negócio. Entre risos, sátiras, fofocas e crédito, o jornal fundamenta o seu espetáculo: levanta a lona, prepara o picadeiro e… este texto está militante demais!

Apesar de meu temor (e da relutância em utilizar este último termo e suas variantes), muitas são as sardinhas que fogem com destreza das presas do sistema. Não são e nem serão jamais enlatadas ou servidas frescas a um “esfaimado de fome”. No entanto, outras há que as substituam, e as derradeiras fugitivas serão vistas com maus olhos pelas que ficarem e que vierem depois, sendo tachadas de desordeiras. E assim a vida segue, até que se prove o contrário.

Referências

BALZAC, Honoré de. “Ilusões Perdidas”. In: A Comédia Humana: orientação, introduções e notas de Paulo Rónai. Tradução de Ernesto Pelanda e Mario Quintana. SP: Globo, 2013, vol. 7.

LLOSA, Mario Vargas. A Orgia Perpétua: Flaubert e Madame Bovary. Trad. José Rubens Siqueira. RJ: Alfaguara, 2015.

A Liberdade guiando o Condenado

Direitos Humanos, Democracia, Feminismo, Liberdade. Temas de grande impacto na atualidade. Temas de grande importância e de importante discussão. Temas que refletem um mundo de opções. Temas, cujas opções são espelhos, onde nos vemos a nós. Temas formadores de Ego. Temas capazes de entorpecer e confundir.

França, 1830. Auge da Revolução Francesa. Homens, mulheres e crianças lutando lado a lado em busca de direitos, de voz, de liberdade e de reconhecimento. Uma mulher, de braço erguido, empunhando a bandeira nacional, tendo seu pé à frente, com os seios a mostra, aponta o caminho olhando seu batalhão surrado e maltrapilho a lhe seguir, a única personagem de merecido destaque, iluminada o suficiente para que todos a vejam, que a desejem, que lutem por ela. Seu nome? Liberdade.

poussin123A tela de Eugène Delacroix (1798-1863), A liberdade guiando o povo (1830), tornou-se um marco para a Arte, que levantava questões de cunho social em parte da Europa Ocidental, além de seu enquadramento técnico (sombreamento, definição de contornos, plano de fundo etc.). O romantismo social francês ganhava forças à medida que importantes personalidades atuavam nos campos artísticos, políticos e filosóficos. Victor Hugo (1802-1885) foi autor de belos poemas e destacadas peças teatrais, mas seus romances formaram seu nome ao longo dos séculos. Obras como Os Miseráveis (1862), Os Trabalhadores do Mar (1866), O Homem que Ri (1869) entre outras mais, compõem seu material literário de aspecto social. No entanto, para este momento, para o qual estamos em grande conflito, abordar O Último Dia de um Condenado (1829) parece ser aquela onde a “liberdade” está para ser questionada.

Bicêtre.

Condenado à morte!

Já se vão cinco semanas que convivo com tal pensamento, sempre só com ele, sempre petrificado por sua presença, sempre encurvado sob seu peso!

Outrora, pois me parece que faz anos e não semanas, eu era um homem como outro qualquer. Cada dia, cada hora, cada minuto tinha sua idéia. Meu espírito, jovem e rico, era repleto de fantasias. Divertia-se em expô-las a mim, uma depois da outra, sem ordem e sem fim, bordando com infindáveis arabescos esse rude e frágil tecido da vida. Eram moças, esplêndidos mantos de bispo, batalhas vencidas, teatros cheios de barulho e de luz, e então mais moças e tranqüilas caminhadas noturnas sob os espessos galhos das castanheiras. Era sempre festa na minha imaginação. Eu podia pensar no que quisesse, era livre.

Agora sou cativo. Meu corpo está atado a grilhões em uma masmorra, meu espírito está preso a uma idéia. Uma horrível, sangrenta, implacável idéia! Restou-me apenas um pensamento, uma convicção, uma certeza: condenado à morte!

O que quer que eu faça, ele está sempre ali, esse pensamento infernal, como um espectro de chumbo a meu lado, solitário, ciumento, afastando qualquer distração, face a face com minha pessoa miserável, e sacudindo-me com duas mãos de gelo quando quero desviar a cabeça ou fechar os olhos. Ele se insinua sob todas as formas em que meu espírito gostaria de se esconder, mistura-se, como um refrão horrível, a todas as palavras que me dirigem, cola-se comigo nas grades hediondas de meu calabouço; importuna-me quando estou acordado, espreita meu sono convulsivo e reaparece em meus sonhos sob a forma de uma lâmina.

Acabo de acordar aos sobressaltos, perseguido por ele e dizendo a mim mesmo: ‘Ah! É só um sonho!’ Ora, antes mesmo que meus olhos pesados tenham tido tempo de se entreabrirem o suficiente para ver esse pensamento fatal inscrito na terrível realidade que me envolve, na laje úmida e enfadonha de minha cela, sob a pálida claridade de meu candeeiro, na trama grosseira da tela de minhas roupas, sobre a figura sombria do soldado de guarda cuja cartucheira reluz através da grade da masmorra, parece-me que uma voz já murmura em meus ouvidos:

– Condenado à morte!”

Direitos humanos, Democracia, Feminismo: Liberdade. Não, não se trata de a obrao-c3baltimo-dia-de-um-condenado-victor-hugo retratar um amargo período da História, os sangrentos abalos da lâmina ferina, da pena de morte como solução lamentável de uma situação crítica. Trata-se, antes, dos amargos julgamentos estabelecidos em sociedade, dos sangrentos abalos de nossa arma mais letal, a palavra. Trata-se, enfim, da atualidade presente nos gritos desse condenado à morte.

A história, narrada em primeira pessoa, é contada como uma espécie de epístola por um prisioneiro condenado à morte. O estilo, tão presente e tão vivo (como aconteceu com o jovem Werther, de Goethe), aproxima o leitor dos relatos da personagem. Esta é sua última semana e, nesta, já sem esperanças, conta os percalços que vive até o momento que lhe separa da realização da pena. Não há nada que revele seu crime, como lá chegou, mas lá está privado de “liberdade”.

Então, que fazer? Temo-lo tão próximo, mas o quanto dele nós podemos confiar? O que nos dá total segurança de dizer juntos, à leitura da obra, “condenado à morte”? Sim, pois é através da leitura que firmamos o pacto com a “liberdade”. Liberdade de fazermos o que quisermos, sem pensarmos nas conseqüências de nossos atos. A pena de morte não é admitida no Brasil, mas quantos desconhecidos já legamos ao fatídico destino? Certos de que a morte é nosso fim mais preciso o que faz de nós sermos capazes de antecipá-la a alguém?

A resposta já a temos: a palavra. A única guilhotina resistente ao tempo, capaz de fazer vir à tona eventos de séculos tão distantes. A única capaz de jogar o outro à fogueira, levar à forca… A única com poder suficiente de nos dar liberdade. Liberdade de sermos intolerantes, de acusarmos o outro por um defeito de cor, por uma religião distinta, por uma verdade não-identificada pelo eu e, portanto, tornada falsa. Quem são os condenados? Ora, basta que nos deparemos com o primeiro espelho a nos mirar. Todos nós somos condenados. Condenados à morte!

Caímos, por vezes, no grande equívoco de achar que somos os primeiros a pensar determinados questionamentos, a querer encerrar a crise nacional (e por que não mundial?) com a força de nossos braços, e, agora, com a rapidez e engenhosidade de um clique. Nada mais natural. Os louros são colhidos por nós, que sequer vivemos um terço dos nossos antepassados. Lutamos a mesma batalha? Obviamente que não. Mas devemos ser capazes de reconhecer que não somos originais.

Amy Foster – Joseph Conrad

Há tempos não tinha o prazer de me entorpecer com a leitura de pequenas novelas, contos, testículos enfim, providos de grande teor literário. Algumas se tornaram marcantes em meu espírito, como Noites Brancas, A Dócil, Gente Pobre, ambas de Fiódor Dostoiévski, exímio literato da Rússia do século XIX. (As três obras, anteriormente citadas, compõem o nosso catálogo de resenhas. Confira.) Retornar às leituras (e agora, espero, com atenta dedicação) de Joseph Conrad, este gênio da Literatura Inglesa do século XX, tão conhecido por suas grandes obras (No Coração das Trevas, Lord Jim, Nostromo, O Agente Secreto, A Loucura do Almayer, O Negro de Narciso) trouxe o alento de que precisava, opondo-se aos romances sagazes de quatrocentas páginas ou mais: rapidez.

Os dois autores aqui mencionados são, tanto para mim quanto à Literatura, duas figuras que conseguiram compartilhar os tormentos e percalços provenientes do Homem moderno, e que cada um viveu um pouco na pele tais atribulações, mas que, de igual modo, transformaram-nas em labor literário e, assim, em Arte. Ambos foram selecionados a dedo para comporem mais este trabalho, pois qual não foi o meu espanto ao saber que Conrad, pelas palavras de André Gide, na Introdução desta edição, “a menor menção do nome Dostoiévski o fazia empalidecer.” E mais: “Detestava-o cordialmente”. Mas também outras palavras de Gide reforçam meu pensamento: “[…] com [Dostoiévski], no entanto, não deixava de apresentar certas semelhanças.” Foram estrangeiros em terras distintas, mas encontraram nas trevas o mistério inerente a cada ser pensante.

Obviamente que o estilo de escrita de Conrad é sem comparação com a do russo. Há certa leveza na seleção de suas palavras, ao mesmo tempo em que elas são repletas de horror, o mesmo pronunciado pelo coronel Kurtz. A precisão é tamanha que leva o leitor a navegar juntamente à personagem, sentir o peso da narrativa em cada naufrágio, em cada lapso de desespero sentido por cada vestígio de abandono que se aproxima, sem chances de compreensão, implacável, sem misericórdia.

“Imaginação” é a palavra que circula por toda a novela. O único sobrevivente de um9788571063525 naufrágio consegue se refugiar numa terra estranha, vendo-se recluso pelos seus modos, sua língua, seu jeito oblongo e desajeitado de caminhar, tratado como um animal selvagem, conhecendo Amy Foster, mulher que possui imaginação suficiente para lidar com ele, de lhe estender a mão, ao ponto de se apaixonarem, casarem, terem um filho… e a imaginação se esvair. A narrativa é contada por dois narradores habitantes de Brenzett, em que o segundo deles, doutor Kennedy, conta ao primeiro o que ocorreu ao sensível estrangeiro.

A quem já se aventurou com o “romance sentimental” dostoievskiano, Biélye Nótchi (Noites Brancas), lembrar-se-á do generoso e solitário narrador e a rapariga sonhadora Nástienka, cuja “imaginação” estropia as quatro noites de seu novo amigo, indo embora com seu porto seguro. Konrad, polonês, exilado, adota o nome Conrad ao se encontrar em terras inglesas, das quais aprendera o idioma e, nelas, tornara-se escritor; Dostoiévski, habitante de Moscou, parte para São Petersburgo a fim de prosseguir em seus estudos, percebendo a saraivada agitação da cidade em contraste com o isolamento de alguns indivíduos. É inegável, dessa forma, dizer que ambos se utilizaram deste sentimento de estrangeiro para compor suas obras.

[…] Ah, ele era diferente: um coração inocente e cheio de uma boa vontade que ninguém queria, esse náufrago, que, igual a um homem transplantado para outro planeta, estava separado de seu passado por um espaço imenso, e de seu futuro, por uma imensa ignorância. Sua fala rápida, vigorosa, positivamente chocava todo mundo. ‘Um demônio nervoso’, era como o qualificavam. […].” (CONRAD, p. 48)

Este é Conrad: implacável, sem misericórdia!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONRAD, Joseph. Amy Foster. Trad. Julieta Cupertino. RJ: Revan, 2007.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Noites Brancas. Trad. Nivaldo dos Santos. SP: Editora 34, 2009.